Eu deveria ter me escrito uma carta.
Não sei muito bem o que me diria, mas tenho em mim a certeza de que deveria ter me escrito quando, muito mais jovem, tinha em mim todas as certezas do mundo. Naquela época todos os problemas se resumiam ao fato de ter colocado óculos aos cinco anos de idade e conhecido a crueldade que reside na maioria das crianças. Aquelas que sem piedade alguma encontram um milhão de apelidos e maneiras de te fazerem sentir um nada.
Mesma época em que me dedicava ao máximo para sobrepor minha falta de flexibilidade e continuar parte de um grupo de dança. Eu me superava em cada item que pudesse, encontrando maneiras de saltar mais alto que o grupo todo e um eixo que me fazia piruetar sem fim. Ali eu me esquecia de quem era na real, e acreditava que tudo era possível.
Talvez eu devesse ter me escrito uma carta no dia em que estreei a pequena sereia. Quinze anos de idade, superado o primeiro desafio da vida, pelo menos grande o suficiente para mim. Quando aquelas cortinas baixaram, o público aplaudia e eu podia ouvir gritos de bravo, bravíssimo, e chorei. Depois, com as cortinas já reerguidas, um ramalhete de rosas vermelhas vindo em minha direção me fez acreditar que tudo era possível. Ali, eu deveria ter me escrito.
Deveria ter escrito que era um momento memorável e que independente de quanto tenha custado chegar ali, cada passo tinha valido a pena. Cada dedo sangrando na sapatilha de ponta, cada joelho ralado, dor nas costas, sono, fome, cada uma das dificuldades tinha me feito chegar até ali. Eu me diria para não esmorecer. Que mesmo quando tem uma bailarina melhor do que você, ainda assim existe um lugar que é só seu e nesse lugar você vai brilhar. Diria que no grande espetáculo existem antagonistas prontos para complicar a vida da mocinha, mas que eles sempre perdem no final. Sempre chegará o momento em que todos ficarão sabendo da verdade e que as mascaras cairão.
Nesta carta eu deveria ter contado que mesmo quando achamos que já sabemos o que é amar, quando achamos que vamos morrer porque alguém nos rejeitou, isso não acontece. Não morreremos. Superamos e mais que isso, sempre haverá um outro alguém capaz de encantar nosso coração novamente. Eu deveria ter me avisado que ninguém morre de amor.
Eu deveria ter aproveitado para me dizer, menina, no futuro vai doer, vai machucar, vão tentar te derrubar, mas não desista. Lembra que você caiu do palco ano passado? Lembra que você dançou com pneumonia? Lembra? Você não quebrou. Envergou, mas não quebrou. Vai ser sempre assim, menina.
Eu deveria ter me contato que ao perder pessoas você descobre que a alma pode doer, você fica sem saber como agir e para onde ir ao acordar no dia seguinte. Mas você se levanta, lava o rosto e segue a vida. Ela não pára para esperar você secar as suas lágrimas. Ela nunca pára. Nem para você fazer um curativo no joelho ralado. A música continua e você tem que dançar mesmo com os pés sangrando.
Na minha carta, para mim mesma, eu deveria contar que a beleza abre portas sim, mas cobra bem caro por se passar por elas. Que a exigência que vem com ela de se superar e se provar é pesada demais e nem sempre vale a recompensa. Eu avisaria que ser sempre desejada não é a mesma coisa que ser amada e cuidada e que isso traz muitos enganos. Eu contaria que nem todos que sorriem ao seu lado sorriem por dentro para você.
Mas eu também contaria que os bons são maioria e que existem milhares de lindas surpresas te esperando virar a esquina. Pessoas saídas de bueiros apenas para te fazerem sorrir. Gente que do nada aparece na sua vida e traz uma paz, uma luz e um abraço de graça. Gente que não se importa com a cor do seu cabelo, com a flacidez da sua pele ou com sua voz cansada.
Essa gente será o que te faz seguir. A vontade de fazer diferença na vida de algumas pessoas, poucas que sejam, farão você ver sentido na sua própria superação. Não desista dessas.
Nesta carta eu me encorajaria a acreditar que um amor cura outro até que não machuque mais e fique. Eu diria que amar o que se faz todos os dias é a chave para continuar. Diria também que muitas vezes o que parece o fim do mundo é o começo apenas. Mas de um outro mundo que ainda é desconhecido. E talvez, não melhor nem pior, apenas diferente.
Eu deveria ter me escrito uma carta. Quando eu tinha credibilidade comigo mesma. Quando eu tinha toda a esperança viva em mim. Quando o mundo ainda não tinha me mostrado todas as suas caras. Eu não escrevi.
Mas me escreverei hoje uma carta.
Eu direi que ainda estou aqui. Dançando músicas diferentes que não escolhi, mas ainda dançando. Com os pés sem sangrar mas bem mais cansados. Encontrando rtimos que não conhecia e que são descompassados. Eu direi que achei ter amado muitas vezes, e descobri que ainda não conheço o amor. Que ainda espero pela última vez. Aquela que será para sempre.
Eu me contarei que os monstros mais horríveis são de geléia e que passado o susto derretem em nossa frente. Direi que impressionantemente o coração é mais forte que se imagina, e que concordo com a menina, ninguém morre de amor.
Me direi aguenta, mais um pouco, não desiste agora, você chegou até aqui. Segura sua onda, pega uma onda, vive mais um pouco. Espera pelo que não veio, virá ainda, acredite. Sem meus conselhos você nunca esmoreceu, encontrou forças que não sabia ter. Agora você me tem. Aqui. Para te contar que você venceu, a dor, a solidão, o medo, a rejeição e está ai. De pé.
Olha pra mim. Quem você quis que eu fosse um dia? Veja o que conseguimos. Orgulhe-se do caminho, eram muitas as pedras. Mas passamos por elas.
Talvez agora seja hora de tirar as sapatilhas. Andar descalça, mais devagar sentindo o chão. E por que não levar um bandaid na mochila?
Que texto incrível!
Meu amor eu não tinha visto mil desculpas e muito obrigada sua linda. S2